Fantasias de Carnaval

Pronto, começou a festa! Alvorada, Vassourinha, Ô abre alas…

Abrir os armários de outros carnavais, reunir as compras feitas na Saara, escalar as personagens e se montar para se esbaldar. É hora de vestir purpurina, lançar perfume e bolhas de sabão, abusar dos estereótipos… porque fantasia de carnaval que se preze brinca com a vida, com o não sentido radical das coisas, e põe tudo à flor da pele.

Hoje pode! Até quarta-feira de cinzas, podemos tudo! Piranhas, virgens, fadinhas, super-heróis, chacretes, malandros, playboys, luízas, enfermeiras, cineastas, madonnas, viúvas de Wando… Somos tod@s livres para nos travestir à vontade.

Numa semana em que  foram tantas as notícias de crimes violentos contra as mulheres, em que eu não consegui desfazer esse embrulho no estômago ao ouvir os detalhes de cada uma dessas histórias e pensar no horror que todas essas mulheres passaram (como passam, todos os dias, em tantos lugares), fico pensando nesse momento tão divertido como o carnaval. Será que ele só serve para para “extravasar a alegria” reprimida de nossa sociedade hipócrita, machista? Alguns dias em que dá para esquecer que vivemos num mundo em que o sexo – por mais que esteja exposto nos programas de tevê, nas revistas, nos outdoors pelas ruas – é tão normatizador, tão regulamentador da felicidade alheia: só dá pra ser feliz amando, vivendo, sendo e gozando de jeitos tão prescritivos? Essa é a mensagem?…

Comprar esse pacote não nos tem levado a boas coisas. Não falo apenas pelos crimes sexuais tão recorrentes contra mulheres, crianças, travestis, homossexuais, mas principalmente pela reação da sociedade inteira quando se depara com cada uma dessas notícias. Hipocrisia, diminuição da gravidade dos acontecimentos, culpabilização das vítimas, justificativas machistas… vemos de tudo.

Já é carnaval! Vamos nos despir dos preconceitos, pular, rebolar, ver o bloco passar! Mas que essa brincadeira possa nos abrir o coração e a pele para vivermos os estereótipos de gênero como eles são de verdade: grandes fantasias. E que esse espírito possa permanecer e ser animado dias e dias e meses depois de finada a folia. Que a alegria de não levar tão a sério a vida e suas demarcações pré-fabricadas nos contagie a tod@s… Porque não tem nada mais triste e cafona do que se levar muito a sério… E bora pra rua festejar, que a bagunça já começou!

“Tudo pelo Poder” e o cinismo na política

ATENÇÃO: esse post contém spoilers. Se você ainda não assistiu ao filme, corre lá no cinema e depois volta aqui!

Assisti a “Tudo pelo Poder” (The Ides of March), dirigido e estrelado pelo Geroge Clooney, e saí do cinema bem incomodada. Os atores estão muito bem, o cinismo – tema principal do filme – vai crescendo ao longo da narrativa e escorrendo da tela, e as imagens são fortes e muito bem filmadas.

Não sou crítica de cinema, mas o filme toca em questões que me são caras (o mundo da política, a mobilização pela participação, a “ingenuidade” da adesão a uma causa e as supostas concessões necessárias para governar, a oligarquia efetiva da democracia representativa…), o que me leva a ensaiar aqui algumas reflexões.

A história é a mais cotidiana possível no mundinho (nosso mundo?) da grande política partidária: durante as prévias do partido democrata nos EUA para a escolha do candidato às eleições presidenciais, acompanhamos os personagens que vão se deparando com impasses e situações nas quais é “preciso” fazer escolhas acertadas. As jogadas de cada um tentam antecipar os movimentos dos demais – ainda que as regras não sejam exatamente as mesmas para todos.

O personagem principal (vivido por Ryan Gosling, que está ótimo), Stephen, é um dos principais estrategistas da campanha do candidato Mike Morris, vivido por Clooney (que tem a medida exata do carisma “a toda prova”, receita para que ele permaneça presidenciável durante toda a história, apesar da hipocrisia que seu personagem vai deixando transparecer). Stephen é inteligente, sagaz, e – salve! – comprometido com as causas ambientais e sociais defendidas por Morris.

No universo da política sufocantemente masculino que o filme constrói, a virilidade, a ironia, a capacidade estratégica e a coragem para arriscar são atributos dos personagens sedutores – mesmo das poucas mulheres da trama. Deixar-se afetar de alguma forma é a fraqueza a que todos temem. A “lealdade”, fantasma principal da trama, é evocada em momentos cruciais, mas não chega a ser um princípio que justifique os grandes atos dos personagens. Sua sombra serve apenas para deixar a todos (uns mais, outros menos) desconfortáveis com as decisões tomadas e com as consequências que vão surgindo.

Nesse ambiente de ternos bem cortados, piadas inteligentes e barbas bem feitas, há – como não poderia deixar de haver – uma estagiária. Linda, “adulta”, de família importante, sensual. É pelos dilemas que a estagiária Molly (a bela Evan Rachel Wood, que tensiona na medida maturidade e fragilidade, mote principal de sua personagem) protagoniza que vamos conhecendo as contradições de Stephen e Mike.

“Tudo pelo Poder” é um filme sobre cinismo. Mas não é um filme cínico. Ele fala sobre como aquilo que a sociedade norteamericana mais valoriza na política – o poder, a imagem de alguém acima de qualquer suspeita – se faz ao preço da morte de pequenas sensibilidades, dos afetamentos cotidianos. Quando Molly conta a Stephen que está grávida do candidato Morris (e que ela teria sido estuprada por ele, mas a narrativa não dá destaque a essa questão), Steve – que está tendo um caso com ela – fica visivelmente perturbado. Ele se mobiliza, prontifica a ajudá-la, e consegue o dinheiro para o aborto. Quando eles conversam sobre isso, ficamos na dúvida sobre o que teria levado Stephen a ajudá-la: sua decepção com o candidato, seu envolvimento com a estagiária, ou sua preocupação em “limpar a sujeira” que pudesse atrapalhar a campanha – o que seria parte do seu trabalho. Essa dúvida se desfaz quando ele diz para ela usar o restante do dinheiro e sumir, voltar para sua cidade. Ela pede uma chance, diz que errou, mas ele diz friamente que “não há lugar para erros nesse jogo”.

Toda essa segurança e racionalidade de Stephen são postas em cheque ao ser, ele mesmo, vítima de um “erro estratégico” que cometeu na campanha. Com outras figuras, o diálogo se repete: “você não errou, fez escolhas, e tem que arcar com as consequências dessas escolhas”. Não há matizes, não há outros pontos de vista. O interessante é que o filme destaca que o que surge aí não é a objetividade da mesma regra que deve ser seguida por todos, mas sim o cinismo.

As consequências sofridas por Molly são bem desproporcionais se comparadas às vividas por Stephen, Morris e outros. Isso chama a atenção, por ela ser jovem, mulher, e estar numa condição de fragilidade naquele jogo tão masculino. Como se para alguém “em desvantagem” fosse permitido participar do jogo da política, desde que sob a advertência tácita: “mas arque com as consequências!”. É, de fato, um princípio um tanto perturbador, se avaliamos tudo o que está em jogo e o que, de fato, significa arcar com as consequências para Molly e para Stephen. Na cena final, um longo close do personagem de Gosling, temos um lampejo do que lhe custou tudo o que fez: é um olhar vazio. Mas ele ainda pode ter a oportunidade de reconsiderar tudo isso no futuro, e mesmo de ir viver uma outra vida. Essa chance não se coloca como uma possibilidade para Molly.

O incômodo difuso com que saí do cinema foi se transformando em uma raiva indigesta dessa retórica liberal que valoriza o indivíduo, sua racionalidade e sua objetividade, mas que, ao se atualizar, distingue claramente entre os que podem pagar o preço das apostas, e os que acabam sendo o próprio pagamento. Ignorar isso, e tratar a política como a arena racional em que os interesses se enfrentam, é deixar de ver o cinismo que brota dessa suposição de igualdade entre as partes no embate político. Me faz pensar no que diz Hannah Arendt em seu Sobre a Violência:

“É a aparência de racionalidade, muito mais do que os interesses por trás dela, que provoca a raiva. Valer-se da razão quando a utilizamos como arma não é ‘racional’, tanto quanto usar uma arma em defesa própria não é ‘irracional’.”