“Tudo pelo Poder” e o cinismo na política

ATENÇÃO: esse post contém spoilers. Se você ainda não assistiu ao filme, corre lá no cinema e depois volta aqui!

Assisti a “Tudo pelo Poder” (The Ides of March), dirigido e estrelado pelo Geroge Clooney, e saí do cinema bem incomodada. Os atores estão muito bem, o cinismo – tema principal do filme – vai crescendo ao longo da narrativa e escorrendo da tela, e as imagens são fortes e muito bem filmadas.

Não sou crítica de cinema, mas o filme toca em questões que me são caras (o mundo da política, a mobilização pela participação, a “ingenuidade” da adesão a uma causa e as supostas concessões necessárias para governar, a oligarquia efetiva da democracia representativa…), o que me leva a ensaiar aqui algumas reflexões.

A história é a mais cotidiana possível no mundinho (nosso mundo?) da grande política partidária: durante as prévias do partido democrata nos EUA para a escolha do candidato às eleições presidenciais, acompanhamos os personagens que vão se deparando com impasses e situações nas quais é “preciso” fazer escolhas acertadas. As jogadas de cada um tentam antecipar os movimentos dos demais – ainda que as regras não sejam exatamente as mesmas para todos.

O personagem principal (vivido por Ryan Gosling, que está ótimo), Stephen, é um dos principais estrategistas da campanha do candidato Mike Morris, vivido por Clooney (que tem a medida exata do carisma “a toda prova”, receita para que ele permaneça presidenciável durante toda a história, apesar da hipocrisia que seu personagem vai deixando transparecer). Stephen é inteligente, sagaz, e – salve! – comprometido com as causas ambientais e sociais defendidas por Morris.

No universo da política sufocantemente masculino que o filme constrói, a virilidade, a ironia, a capacidade estratégica e a coragem para arriscar são atributos dos personagens sedutores – mesmo das poucas mulheres da trama. Deixar-se afetar de alguma forma é a fraqueza a que todos temem. A “lealdade”, fantasma principal da trama, é evocada em momentos cruciais, mas não chega a ser um princípio que justifique os grandes atos dos personagens. Sua sombra serve apenas para deixar a todos (uns mais, outros menos) desconfortáveis com as decisões tomadas e com as consequências que vão surgindo.

Nesse ambiente de ternos bem cortados, piadas inteligentes e barbas bem feitas, há – como não poderia deixar de haver – uma estagiária. Linda, “adulta”, de família importante, sensual. É pelos dilemas que a estagiária Molly (a bela Evan Rachel Wood, que tensiona na medida maturidade e fragilidade, mote principal de sua personagem) protagoniza que vamos conhecendo as contradições de Stephen e Mike.

“Tudo pelo Poder” é um filme sobre cinismo. Mas não é um filme cínico. Ele fala sobre como aquilo que a sociedade norteamericana mais valoriza na política – o poder, a imagem de alguém acima de qualquer suspeita – se faz ao preço da morte de pequenas sensibilidades, dos afetamentos cotidianos. Quando Molly conta a Stephen que está grávida do candidato Morris (e que ela teria sido estuprada por ele, mas a narrativa não dá destaque a essa questão), Steve – que está tendo um caso com ela – fica visivelmente perturbado. Ele se mobiliza, prontifica a ajudá-la, e consegue o dinheiro para o aborto. Quando eles conversam sobre isso, ficamos na dúvida sobre o que teria levado Stephen a ajudá-la: sua decepção com o candidato, seu envolvimento com a estagiária, ou sua preocupação em “limpar a sujeira” que pudesse atrapalhar a campanha – o que seria parte do seu trabalho. Essa dúvida se desfaz quando ele diz para ela usar o restante do dinheiro e sumir, voltar para sua cidade. Ela pede uma chance, diz que errou, mas ele diz friamente que “não há lugar para erros nesse jogo”.

Toda essa segurança e racionalidade de Stephen são postas em cheque ao ser, ele mesmo, vítima de um “erro estratégico” que cometeu na campanha. Com outras figuras, o diálogo se repete: “você não errou, fez escolhas, e tem que arcar com as consequências dessas escolhas”. Não há matizes, não há outros pontos de vista. O interessante é que o filme destaca que o que surge aí não é a objetividade da mesma regra que deve ser seguida por todos, mas sim o cinismo.

As consequências sofridas por Molly são bem desproporcionais se comparadas às vividas por Stephen, Morris e outros. Isso chama a atenção, por ela ser jovem, mulher, e estar numa condição de fragilidade naquele jogo tão masculino. Como se para alguém “em desvantagem” fosse permitido participar do jogo da política, desde que sob a advertência tácita: “mas arque com as consequências!”. É, de fato, um princípio um tanto perturbador, se avaliamos tudo o que está em jogo e o que, de fato, significa arcar com as consequências para Molly e para Stephen. Na cena final, um longo close do personagem de Gosling, temos um lampejo do que lhe custou tudo o que fez: é um olhar vazio. Mas ele ainda pode ter a oportunidade de reconsiderar tudo isso no futuro, e mesmo de ir viver uma outra vida. Essa chance não se coloca como uma possibilidade para Molly.

O incômodo difuso com que saí do cinema foi se transformando em uma raiva indigesta dessa retórica liberal que valoriza o indivíduo, sua racionalidade e sua objetividade, mas que, ao se atualizar, distingue claramente entre os que podem pagar o preço das apostas, e os que acabam sendo o próprio pagamento. Ignorar isso, e tratar a política como a arena racional em que os interesses se enfrentam, é deixar de ver o cinismo que brota dessa suposição de igualdade entre as partes no embate político. Me faz pensar no que diz Hannah Arendt em seu Sobre a Violência:

“É a aparência de racionalidade, muito mais do que os interesses por trás dela, que provoca a raiva. Valer-se da razão quando a utilizamos como arma não é ‘racional’, tanto quanto usar uma arma em defesa própria não é ‘irracional’.”

Liberdade de escolha, questões políticas… uma reflexão

Sempre que o assunto “liberdade de escolha” surge em algum debate – e eu costumo aguçar meus ouvidos para o tema, porque tem sido objeto de minha investigação há alguns anos – aparece uma velha confusão: ser livre e poder escolher são a mesma coisa? E o que faz com que uma escolha seja “consciente”? Escolhas “conscientes” são escolhas políticas?

Tratei desse assunto em um artigo recente publicado na revista Redescrições , e gostaria de voltar a esse texto aqui, num formato menos acadêmico. Minha ideia principal é que a noção de liberdade individual como exercício da escolha livre pelos indivíduos promove a despolitização do exercício da liberdade. Por despolitização aqui quero dizer uma desvinculação do ato com questões coletivas, que ultrapassam o indivíduo que naquele momento realiza a escolha. Complicado? Bom, talvez fique mais claro com ama reflexão sobre questões que estão acontecendo mundo afora.

Por isso, gostaria de fazer uma breve análise do documentário de Silvio Tendler “O veneno está na mesa”, lançado no início do ano, que aborda a grave questão do uso de agrotóxicos no Brasil. A partir de questões levantadas no filme relacionadas à política pública de incentivo ao uso de defensivos e substâncias químicas nocivas à saúde e ao meio ambiente na agricultura, gostaria de refletir sobre os discursos e as práticas que colocam a escolha individual como principal meio de realização dos sujeitos, pensando como a valorização desse tipo de liberdade afasta os cidadãos de questões de interesse coletivo – e, por isso mesmo, de difícil negociação.

A questão central do documentário é que, no Brasil, a agricultura – seja na produção em larga escala, seja na agricultura familiar – utiliza grandes quantidades de agrotóxicos, inseticidas, defensivos químicos na produção, e essas substâncias chegam, invariavelmente, à mesa dos consumidores. A denúncia feita pelo diretor, respaldada por entrevistas com acadêmicos, gestores públicos, profissionais de saúde e trabalhadores rurais, é de que no Brasil o uso de substâncias químicas no cultivo de frutas, verduras e legumes ultrapassa indiscriminadamente as margens de segurança, além do fato de que é frequente a utilização de substâncias proibidas nas lavouras.

Na prática, isso significa que os trabalhadores rurais e as pessoas que lidam diariamente com o cultivo, a distribuição e a comercialização de frutas, legumes e verduras, estão sendo expostos a substâncias venenosas, que são reconhecidamente causadoras de uma série de doenças crônicas e mesmo letais. Isso também significa que as pessoas que consomem esses produtos estão sendo expostas a substâncias tóxicas que não supõem estarem presentes nos alimentos, ao menos nas quantidades altíssimas em que se encontram, de fato.

Antes de prosseguir nos argumentos do documentário de Tendler, gostaria de lembrar que, em nossa sociedade, inserida na cultura do consumo, a liberdade é pensada e vivida como um direito e uma experiência individual. Assim, ser livre é fazer escolhas, é se realizar através dessas escolhas, é exprimir sua individualidade por meio das escolhas feitas. A ação livre é não apenas um privilégio do indivíduo, mas algo que, para se concretizar, depende da individualidade e da privacidade da escolha.

Dito isso, vale também lembrar que os discursos de exaltação da escolha individual atravessam a educação (enquanto formação de um futuro indivíduo profissional), a saúde (quando responsabilizam o indivíduo por sua saúde nas escolhas que faz), a sexualidade (exortando à felicidade e à satisfação, mas estabelecendo normas que devem ser seguidas individualmente), e tantos outros campos. Assim, a ideia de ser livre implica a construção de si através da escolha consciente – isto é, responsável, consequente com os efeitos dessa escolha – entre opções disponíveis. Como vivemos numa cultura do consumo, a disponibilidade de alternativas se dá, na maior parte das vezes, no mercado.

Mas voltemos à questão dos alimentos. Uma das maiores recomendações de profissionais de saúde hoje, baseados em estudos e pesquisas, é que as pessoas tenham um estilo de vida saudável para evitar doenças e problemas de saúde. Os principais carros-chefe desse estilo de vida são a prática de exercícios físicos e o consumo de alimentos naturais, incluindo muitas frutas, legumes, verduras e produtos não industrializados. Essa orientação vem sendo seguida à risca por muitas pessoas que, com isso, se percebem fazendo escolhas mais saudáveis, promovendo mudanças em seu consumo cotidiano que trarão consequências para sua qualidade de vida.

O primeiro impacto que um vídeo como “O veneno está na mesa” causa nas pessoas é de estupefação: “Então tudo o que eu pensei estar fazendo corretamente não adianta para nada?!”. De fato, é impossível não se indignar com os resultados de exames laboratoriais que indicam a presença de substâncias tóxicas no leite materno de mulheres que consomem os alimentos à venda no mercado brasileiro.

Entretanto, o filme permite algumas reflexões mais profundas, que se articulam com a questão da despolitização da escolha individual que mencionei no início. Um dos principais a priori da liberdade de escolha individual é a possibilidade de que a escolha seja consciente. Isso significa que o indivíduo precisa saber quais são as opções que lhe estão disponíveis e quais são as consequências que cada uma delas acarreta se for escolhida.

Só que esse modelo individualizado de escolha pela via do esclarecimento começa a se mostrar ineficaz quando outros fatores entram em jogo. A grande denúncia do documentário de Tendler é de que existem enormes interesses econômicos na utilização não apenas de agrotóxicos venenosos, em grandes quantidades, na produção de alimentos no Brasil (estima-se que cada brasileiro consuma cerca de 5,2l de agrotóxicos por ano), mas também de sementes transgênicas, que requerem a aplicação de uma série de defensivos químicos nocivos à saúde. Esses interesses econômicos de empresas multinacionais são garantidos em nosso país por meio de subsídios do governo, redução de impostos e incentivos para que o pequeno agricultor utilize os produtos comercializados pelas grandes empresas em sua lavoura.

São muito fortes os depoimentos de trabalhadores rurais que falam de como são obrigados a comprar sementes transgênicas de determinadas empresas multinacionais – e todo o pacote de produtos químicos que o cultivo dessas sementes demanda – para conseguirem financiamento do governo para suas lavouras.

Esse cenário perverso levanta sérias questões para a ideia de escolha de uma alimentação natural e saudável, feita pelo consumidor que vai ao supermercado ou à feira. Um ponto interessante que o documentário discute é a possível alternativa dos alimentos orgânicos. Atualmente, devido à completa ausência de incentivos públicos para a produção em larga escala de alimentos livres de agrotóxicos, os produtos orgânicos são muito caros, e seus preços são proibitivos para a população em geral.
Entretanto, mesmo o consumidor que puder pagar por essa alimentação diferenciada e optar por comprar apenas alimentos orgânicos – julgando com isso estar garantindo um estilo de vida saudável, mesmo que nem todos possam ter acesso a ele – não se encontra fora dessa engrenagem.

Se formos considerar apenas as implicações individuais, vale lembrar que a imensa maioria dos alimentos processados e industrializados disponíveis no mercado tem como matéria-prima alimentos transgênicos e/ou cultivados com agrotóxicos. De alguma forma, essas substâncias chegam à mesa das pessoas – no pãozinho do café da manhã, na margarina, no leite de soja em caixinha. Além disso, a utilização de agrotóxicos contamina o solo, os lençóis freáticos e o ar – especialmente quando aplicados sem controle, como o filme denuncia que ocorre no campo brasileiro de maneira geral. Essa contaminação residual fica no ambiente, e impacta na saúde das pessoas – mesmo daquelas que só consomem produtos orgânicos.

A questão que fica evidente ao final do filme é que estamos diante de um problema muito sério de saúde pública. Entretanto, as maneiras de se lidar com ele não podem ficar no âmbito das escolhas individuais, que se realizam no domínio privado da escolha do cardápio, da compra de supermercado, do preparo dos alimentos. A valorização da liberdade individual, nesse caso como em tantos outros, tira o problema do campo político, do embate de posições conflituosas e da luta por questões coletivas, restringindo-o à redoma da vida privada, em que o isolamento dos indivíduos oferece uma pálida sensação de segurança. Para enfrentar questões como essa, não é possível abrir mão da esfera pública – de discussão, de desentendimento, e de disputas – para que a regulação do mundo comum (através das leis, das políticas públicas) seja mais democrática. Nesse espaço, talvez seja possível lutar por um outro sentido de liberdade, que não se reduza ao exercício da escolha individual.